Dizes-me para escrever, que escrevo bem, que tenho jeito e
que se gosto, devia escrever.
Mas e o que devo fazer quando os momentos em que me apetece
escrever são aqueles em que não gosto de escrever?
Foi a pergunta que fiz a mim própria esta noite. E aqui
estou, sozinha com esta página em branco, mas que depressa se vai enchendo de caracteres.
Talvez ela venha a ler estás palavras. E também talvez ela encontre nelas aquilo que não tive coragem para escrever exatamente há quatro
anos, porque no fundo estas palavras (também) são para ela.
Talvez ao lê-las, te zangues comigo por lhes encontrares
fantasmas e medos, como lhes chamas.
Talvez ninguém as leia e ainda assim terão servido, para me
ajudar a passar os minutos que se arrastam lentamente como se puxassem correntes, até que aquela porta se abra, as comportas se
fechem e tudo volte a estar, aparentemente e só por instante, nos seus devidos lugares.
Ontem quando fui ao sofá e lhe sussurrei ao ouvido o quanto a amo, quando fui ao
quarto e ajeitei cada pormenor no seu devido sítio, quando cozinhei o suficiente para a semana inteira, quando verifiquei pela décima vez no dia a mala, quando tentei deixar tudo arrumado,
será que já sabia? Ou sentia?
Não importa.
Quando agora, horas depois disso, me vejo dentro de um filme no qual já
fui protagonista, quero fugir e os pés ficam colados ao chão, as
palavras que me chegam ao ouvido e a festa no ombro, já também conhecida,
deviam soar como apaziguadoras e parecem-me a confirmação de um fado já
ouvido.
Queria dizer que não, que não podia ser. Mas inexplicavelmente e parecendo terem vontade própria, as palavras que me saíram foram: Sim, eu entendo, eu fico. Mas
doeu mais, muito mais. O fado era um velho conhecido, mas desta vez era mais
arrastado, mais melancólico e o manto em que me envolvia era muito mais pesado.
Mas como dizer que não? E fiquei.
E desde então tem sido igual, mas pior, muito pior, porque me sinto partida em duas metades, uma dentro de mim, pela qual fico aqui e outra, fora de mim, neste momento e iniciar a sua dança no palco da vida, aqui tão perto mas fora do meu alcance, do meu olhar de mãe.
E as horas apenas se arrastam, devagar, ainda mais devagar
do que os meus passos, já cansados e demasiado pesados.
Tenho vontade de escrever SMS, de fazer mil perguntas, de
gritar bem alto, de amaldiçoar todos os deuses, de vender a alma ao diabo… de
escrever listas de tarefas que vocês devem cumprir, qual capitã que perdeu a
batalha e se recusa a desistir. Quero carregar neste botão vermelho e inundar
de perguntas aquele anjo sem bata, mas para cada uma delas eu já sei a
resposta. Mentalmente amaldiçoo cada noite que não dormi, cada hora que
trabalhei a mais. Mas não, recuso-me a isto. Sei que fiz tudo o que estava ao
meu alcance, recordo cada dia: foram trinta semanas sem dar colo à princesa
maior, sem carregar pesos, foram vinte semanas com seis picadelas diárias, com
um controlo rigoroso do peso e com consultas semanais. Cumpri a minha parte.
Tenho a certeza disto. Então o que faço eu aqui, neste quarto que mais parece
de hotel, mas que eu sinto como de prisão?! Todas as caras são conhecidas e todas elas me dizem que já sei o que
se segue e que não me devo preocupar…
Oh Merda! Num raro momento na minha vida preferia não saber
nada! Porque o que sei custa muito.
E todas as perguntas me inundam novamente:
porquê eu outra vez? E a resposta chega com um bater ligeiro na porta… engulo
as lágrimas que não cheguei a largar, endireito-me na cama e sorrio, afinal sou
psicóloga e serei mãe pela segunda vez e sim, nada disto é novidade para mim…
Entram duas caras já tão conhecidas que me dizem: “Vai ter de ser,
daqui a vinte minutos, já a vêm preparar e encontramo-nos no bloco. Não reajo,
deixo-os chegar à porta e antes de saírem, sussurro baixinho e muito a medo…
por favor, desta vez eu quero vê-la. A resposta foi pronta: se for possível, claro que sim.
Endireito-me na cama, agarro o telefone e digo, com uma estúpida voz calma que não reconheço, que ela vai
nascer. Quando? Agora.
Desligo e espero.
Lembro-me do quanto fui infeliz ao longo daquelas sete semanas, ou daqueles doze dias. O quanto senti literalmente o coração a bater fora do corpo.
Lembro-me de agradecer, todos os dias, por vos ter às duas aqui comigo.
Lembro-me de agradecer, todos os dias, por vos ter às duas aqui comigo.
Mas também me lembro que a prematuridade existe. E doí.

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