A dona de tanto e de tudo

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"Escrevo, como diria um católico, e já percebeu que não o sou, para salvar a alma, pois apesar de sua transparência alguma mancha há de ter"

domingo, 16 de novembro de 2014

Dia mundial da Prematuridade - 17 novembro

Dizes-me para escrever, que escrevo bem, que tenho jeito e que se gosto, devia escrever.

Mas e o que devo fazer quando os momentos em que me apetece escrever são aqueles em que não gosto de escrever?
Foi a pergunta que fiz a mim própria esta noite. E aqui estou, sozinha com esta página em branco, mas que depressa se vai enchendo de caracteres.

Talvez ela venha a ler estás palavras. E também talvez ela encontre nelas aquilo que não tive coragem para escrever exatamente há quatro anos, porque no fundo estas palavras (também) são para ela.

Talvez ao lê-las, te zangues comigo por lhes encontrares fantasmas e medos, como lhes chamas.
Talvez ninguém as leia e ainda assim terão servido, para me ajudar a passar os minutos que se arrastam lentamente como se puxassem correntes, até que aquela porta se abra, as comportas se fechem e tudo volte a estar, aparentemente e só por instante, nos seus devidos lugares.

Ontem quando fui ao sofá e lhe sussurrei ao ouvido o quanto a amo, quando fui ao quarto e ajeitei cada pormenor no seu devido sítio, quando cozinhei o suficiente para a semana inteira, quando verifiquei pela décima vez no dia a mala, quando tentei deixar tudo arrumado, será que já sabia? Ou sentia?

Não importa.

Quando agora, horas depois disso, me vejo dentro de um filme no qual já fui protagonista, quero fugir e os pés ficam colados ao chão, as palavras que me chegam ao ouvido e a festa no ombro, já também conhecida, deviam soar como apaziguadoras e parecem-me a confirmação de um fado já ouvido.

Queria dizer que não, que não podia ser. Mas inexplicavelmente e parecendo terem vontade própria, as palavras que me saíram foram: Sim, eu entendo, eu fico. Mas doeu mais, muito mais. O fado era um velho conhecido, mas desta vez era mais arrastado, mais melancólico e o manto em que me envolvia era muito mais pesado.

Mas como dizer que não? E fiquei.

E desde então tem sido igual, mas pior, muito pior, porque me sinto partida em duas metades, uma dentro de mim, pela qual fico aqui e outra, fora de mim, neste momento e iniciar a sua dança no palco da vida, aqui tão perto mas fora do meu alcance, do meu olhar de mãe.

E as horas apenas se arrastam, devagar, ainda mais devagar do que os meus passos, já cansados e demasiado pesados.

Tenho vontade de escrever SMS, de fazer mil perguntas, de gritar bem alto, de amaldiçoar todos os deuses, de vender a alma ao diabo… de escrever listas de tarefas que vocês devem cumprir, qual capitã que perdeu a batalha e se recusa a desistir. Quero carregar neste botão vermelho e inundar de perguntas aquele anjo sem bata, mas para cada uma delas eu já sei a resposta. Mentalmente amaldiçoo cada noite que não dormi, cada hora que trabalhei a mais. Mas não, recuso-me a isto. Sei que fiz tudo o que estava ao meu alcance, recordo cada dia: foram trinta semanas sem dar colo à princesa maior, sem carregar pesos, foram vinte semanas com seis picadelas diárias, com um controlo rigoroso do peso e com consultas semanais. Cumpri a minha parte. Tenho a certeza disto. Então o que faço eu aqui, neste quarto que mais parece de hotel, mas que eu sinto como de prisão?! Todas as caras são conhecidas e todas elas me dizem que já sei o que se segue e que não me devo preocupar…

Oh Merda! Num raro momento na minha vida preferia não saber nada! Porque o que sei custa muito. 

E todas as perguntas me inundam novamente: porquê eu outra vez? E a resposta chega com um bater ligeiro na porta… engulo as lágrimas que não cheguei a largar, endireito-me na cama e sorrio, afinal sou psicóloga e serei mãe pela segunda vez e sim, nada disto é novidade para mim… Entram duas caras já tão conhecidas que me dizem: “Vai ter de ser, daqui a vinte minutos, já a vêm preparar e encontramo-nos no bloco. Não reajo, deixo-os chegar à porta e antes de saírem, sussurro baixinho e muito a medo… por favor, desta vez eu quero vê-la. A resposta foi pronta: se for possível, claro que sim.

Endireito-me na cama, agarro o telefone e digo, com uma estúpida voz calma que não reconheço, que ela vai nascer. Quando? Agora.

Desligo e espero.


E esperei muito mais do que queria. Novamente.

Daquele momento, não recordo grande coisa para além do medo, muito medo. 

E recordo o choro, dela, desta vez forte. Recordo as vozes que me dizem que é exatamente igual à irmã. Recordo-me de sorrir.

E sim, lembro-me de finalmente me permitir sentir o cansaço, e lembro-me de dormir nessa noite, embalada pelas lágrimas da certeza de não terem sido os meus braços que vos confortaram pela primeira vez, nem a minha voz que vos embalou. 

Lembro-me de contar exatamente 24h, para me poder levantar, de me recusar a sentir dor física e de me quase arrastar até vocês, porque cada minuto longe e sem vos ver doía demais. 

Lembro-me de ouvir o telefone a tocar, sem estar realmente a tocar, de cada vez que não estava a olhar para vocês. Lembro-me de ter vontade de cortar os fios dos monitores só para não ouvir os alarmes a apitar. De cada vez que tinha de sair do hospital, fugia a esconder-me em casa, só para ninguém me ver sem barriga, para não me perguntarem por vocês. Lembro-me de cada vez que quase me senti zangada porque um dos parâmetros tinha piorado, por saber que isso iria atrasar a vossa ida para casa. 

Lembro-me do quanto fui infeliz ao longo daquelas sete semanas, ou daqueles doze dias. O quanto senti literalmente o coração a bater fora do corpo.

Lembro-me de agradecer, todos os dias, por vos ter às duas aqui comigo.

Mas também me lembro que a prematuridade existe. E doí.


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